sábado, 10 de novembro de 2012

Eles Amavam A Vida

Texto escrito por JOSÉ EDUARDO ZEPKA como “Colunista Convidado” para a coluna EuroCine.
O titular da coluna, D.M. RANGEL, estará de volta em dezembro.


Aí chegados, na funda bacia
vi gente imersa num limbo asqueroso
que de comuns cloacas parecia
Canto XVIII, Divina Comédia
Dante Alighieri

Um filme de contrastes ou como afirmou Sadoul: “uma película barroca e excessiva”; assim defini-se Kanal (Polônia, 1956). Nele, do borbulhante excremento aflora a sinceridade pela vida, evoca-se o amor no mais plástico dos maus-gostos. Kanal é pesado, não sendo recomendado aos desavisados. Clichês a parte, nem todos vão apreciar a obra, mas ninguém sairá indiferente.


Em se tratando de arte, existem: obras de momento – recebidas com alvoroço, pois dialogam com um tema pertinente a uma dada sociedade, mas a posteriori, passadas por uma reavaliação, perdem sua relevância. Muitos filmes poloneses abordam particularismos históricos, de modo que outras nacionalidades possam vir a ter dificuldades de compreender os pormenores. Ademais, em minha concepção, existem mais dois fatores que realçam o distanciamento com o “espectador estrangeiro”: - A questão do ponto de vista polonês sobre o conflito, porque é uma ótica histórica periférica; - E o uso de subjetividade para tratar de determinados temas devido à censura. Kanal narra um episódio muito particular ao povo polonês, mas tem o mérito de utilizar dessa especificidade histórica para construir uma miscelânea de situações universais.


Setembro de 1944, últimos dias do levante de Varsóvia. A resistência polonesa, incapacitada em dar prosseguimento na luta pela capital frente à ofensiva alemã, resolve se retirar. Não bastasse a humilhação de deixar a cidade à revelia de forças estrangeiras, resta se “rebaixar” ao nível dos ratos e fugir pelos esgotos, única rota possível naquelas circunstâncias. Os personagens não compõe um grupo uníssono focados num ideal maior, eles têm projetos de vida particulares, o justo motor na busca da sobrevivência. A questão não é encerrar um fim, mas um começo. Kanal não é sobre heroísmo, mas, sim, vítimas, pessoas que amavam a vida, mas pelo absurdo da história tiveram-na tolhida.


Antes de prosseguir com a análise do filme, voltemo-nos ao contexto da sua produção. Seu desenvolvimento só foi possível graças à flexibilidade promovida pelo outubro polonês (1956), no qual a Polônia adquiriu maior independência frente a URSS com a ascensão de Gomulka ao poder. Isso permitiu uma maior liberdade e o revisionismo de dirigismos culturais, principalmente aqueles relativos ao realismo socialista. O levante de Varsóvia, até esse momento, era considerado um tabu e as autoridades soviéticas tinham cautela com o assunto, mas graças aos novos ares políticos-culturais foi possível a feitura do filme.


Nota: Levante de Varsóvia (1 de agosto de 1944 – 2 de outubro do mesmo ano). Era sabido que as tropas de Stalin se aproximavam de Varsóvia e em breve chegariam. Baseado nisso, durante o levante, a resistência não poupou esforços para defender a cidade, pois logo contariam com auxílio soviético para expulsar os alemães. Após expurgar os nazistas, o objetivo da resistência era fazer frente à influência vermelha que Moscou iria querer exercer sobre o país. No primeiro momento, o interesse era militar, conseguir libertar o país da Alemanha; o segundo, político, não deixar a URSS impor o comunismo à Polônia, mantendo-a soberana. Mas o desenrolar da história não foi esse. Stalin chegou às portas da cidade, mas lá permaneceu, esperou a cidade ser aniquilada para poder estabelecer suas bases com facilidade, sem obstáculos. A resistência aguentou durante 63 dias até sua rendição, poderia ter se evitado milhares de mortes e feito valer o esforço da última, mas o imperialismo Russo falou mais alto.

Kanal pode ser dividido em duas partes. A metade inicial, passada na superfície, onde a ideia corrente é resistir para libertar. A segunda parte, dentro dos esgotos, a questão é encontrar um caminho em meio à escuridão – para onde vamos? Ou – para onde vai à Polônia? No que foi elucidado acima, podemos dizer que o conflito opera em duas chaves: uma militar-objetiva em relação aos alemães e outra política-subjetiva em relação aos soviéticos. Em uma bela sequência: “Margarida arrasta Bússola, quase morto, até uma luz pensando ser a liberdade no fim do túnel. Quando um corte bruto releva a grade, impedindo-os à transposição. Dela resta o olhar de esperança castrada voltado para o rio Vístula, enquanto ele, em meio a alucinações, perece em seu colo.” Essa sequência é muito significativa porque mostra a condição satélite da Polônia, com todas as implicações aí envolvidas, principalmente relativas à sua autodeterminação, ou seja, o país apenas fez a transição do jugo da extrema direita para extrema esquerda. Embora a “grade” seja uma metáfora, o povo Polonês compreendeu a mensagem e projetou seus traumas – Stalin estava atrás do Vístula podendo ajudar e não o fez, depois castrou a liberdade do país!


A obra de Wajda permanecerá marcada na retina. É difícil esquecer: o desespero da mulher à procura de sua filha; o soldado que emerge das fezes para à superfície, onde um pelotão nazista aguarda com armas em punho; o velho oficial, chafurdado na sujeira emitindo grunhidos melancólicos; o artista que vaga demente, tocando sua ocarina para uma plateia de cadáveres acomodados em fétidos excrementos; ou o tenente e seu dilema – ficar e morrer como herói ou fugir e tentar salvar o máximo possível da equipe? No final, nenhum nem outro. Todos, vítimas da tragédia absurda da história.
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