sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Paternidade Contestada


SERGIO MOTA

A maternidade é inconteste. A paternidade não! É em torno dessa possível verdade que gravita o relato pungente de O Filho Eterno, livro de Cristovão Tezza, publicado em 2007, que inspira o acontecimento teatral do ano: a montagem da Companhia dos Atores de Laura. A adaptação de Bruno Lara Resende fornece a fluidez necessária para que o livro entre no palco como uma obra autônoma, sem desmerecer o texto original. Não me lembro, nos últimos anos, de ver uma adaptação literária tão segura de si, a ponto de esquecermos, sem demérito, o seu ponto de partida. Os críticos que acreditam que literatura de ficção não pode render bom teatro deveriam aprender com essa transposição – termo mais adequado aqui do que "adaptação", porque o que Lara Resende faz é um atravessamento de soluções para traçar um novo caminho. Existe prêmio para adaptação teatral? Se não existe, está na hora de criar, não?



Manter a terceira pessoa imperiosa em quase toda a montagem, exatamente como no livro, com alguns diálogos esparsos, é um risco dos maiores. Afinal, este é um recurso literário, e não de dramaturgia. A peça fica com cara de leitura dramatizada, mas sem se comprometer: esse temor é derrubado já nos primeiros cinco minutos, ou até antes, quando se percebe que se trata do único caminho possível para não resvalar em pieguices sentimentais, risco comum numa história sobre um pai e um filho com síndrome de Down. Ao mesmo tempo em que o personagem está envolvido, ele tem a capacidade de se distanciar e narrar, em tom crítico, para o espectador. Quase um recurso parecido com o teatro épico de Brecht. Talvez com a intenção de provocar um distanciamento para que o espectador veja as coisas com os olhos de quem está lá dentro.


A inventiva e genial direção de Daniel Herz aponta para novas possibilidades em seu trabalho à frente da Companhia. Só ele, com a coerência de seu trabalho artístico de anos, é capaz de fazer um monólogo e conseguir colocar toda a sua Companhia em cena. É como se você pudesse ler o livro de Tezza em tempo real, sem deixar de afirmar a sua respiração plausível para o teatro, como deve ter percebido antes de todos o olhar à frente de Pablo Sanábio.


A luz, de Aurélio de Simoni, é um espetáculo à parte. Não tenham dúvida de que ela é um personagem que dialoga com a solidão de Charles Fricks no palco. Uma direção autoral pede uma luz com assinatura, que dramatiza na medida o conflito daquele pai assustado com a eternidade que o filho diferente representa. Os avanços, recuos e meandros da iluminação colocam o espectador dentro da cabine de operação da luz, justamente porque funcionam, sem didatismo, como recursos que ajudam a contar a história e que provocam uma espécie de disjunção para valorizar a palavra.


No entanto, nada disso seria possível sem a atuação de ourivessaria de Charles Fricks. Imagino que Charles tenha na mão vários espetáculos para experimentar, porque é incontável a possibilidade de respirações e modulações dessa atuação vitoriosa. Nada é previsível em sua performance, nem mesmo o momento em que se passa da rejeição ao acolhimento do filho, numa bela e muito simples imagem final, paradigma da peça, que não revelo aqui para obrigar a ida ao teatro, com urgência. Como um ator consegue, já no segundo dia do espetáculo, ter isso nas mãos? No dia em que assisti à montagem, a plateia não se movia ou só o fazia quando o ator permitia, num misto de concerto e espetáculo teatral em que o único caminho possível é o arrebatamento final, como numa ópera, aos gritos de bravo.

O FILHO ETERNO
Sextas e Sábados, às 18h30
Teatro Leblon
Rua Conde de Bernadote, 26, loja 104, Leblon. Rio de Janeiro–RJ


Sergio Mota é curador de Cinema e Teatro do Centro Cultural Justiça Federal (CCJF) e professor da PUC-Rio, onde leciona as disciplinas Cinema Brasileiro e Comunicação e Literatura. Apaixonado pelas artes, de vez em quando reassume o papel de ator. 
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