sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Utopia da Mecânica


SERGIO MOTA

A relação que Walter Daguerre estabelece entre os diários de viagem de Ernesto Guevara e Alberto Granado e o seu sensível texto, A Mecânica das Borboletas, é eficiente. Uma fábula sobre o poder dos nossos desejos e dos nossos impulsos contraditórios, em um mundo de código moral estrito e darwinista. No universo em que vivem os personagens parece não haver saída, as portas estão fechadas para a esperança. Contrariando o óbvio, Daguerre substitui o determinismo pela redenção, o destino pela autodeterminação, ousando refutar o principal mito fundador da tragédia clássica: o filho destinado ao sacrifício.



Dois irmãos gêmeos, Remo e Rômulo, projeção um do outro. O segundo volta para casa depois de 20 anos fugido, enquanto o primeiro fica com a mãe, demente após a morte do pai. Daguerre dispensa os perfis psicológicos: todos os personagens parecem cumprir apenas um papel social. A mãe, na sua demência; Liza, no sonho da criação de uma cooperativa (a parte menos bem resolvida do texto, dispensável) e o principal personagem do espetáculo, Remo, interpretado por Otto Jr, quase um autista por ter passado por cima de seus sonhos, dividido entre a formação de uma família e o desejo de ganhar o mundo, ter o seu rito de passagem numa moto, tal como Alberto e Granado em "Diários de Motocicleta".


A volta de Rômulo introduz uma brisa de vida real, de pessoas de carne e osso, num cenário (uma oficina, metáfora de algo que precisa de conserto) em que os personagens (a mãe, Remo e a mulher, Liza) parecem marionetes de um destino implacável. São personagens sem um horizonte utópico definido e altamente prejudicado. Remo, construído com sutileza e filigranas que somente um ator sofisticado como Otto Jr. poderia fazê-lo, já que tem nas mãos o personagem mais difícil do espetáculo, fica imprensado entre a lógica de regras familiares e o desejo de lutar contra elas. Aí está o cerne principal do sofisticado texto de Walter Daguerre, que, num primeiro momento pode parecer óbvio: uma fábula sobre a possibilidade de se construir o próprio destino.


A direção de Paulo de Moraes confere clareza à narrativa, deixa-a mais próxima do mito, fornecendo uma qualidade fabular, quase edificante e pós-humanista. Por isso, o cenário do diretor e de Carla Berri é um achado, pois não está fincado num espaço geográfico totalmente realista (não se menciona onde se passa a história), não há compromisso documental. As engrenagens, obrigações e carcaças a consertar na oficina metaforizam uma ordem acima dos desejos individuais, razão do conflito entre os irmãos, principalmente do que fica "estacionado" no lugar de origem.


Toda essa problemática encontra sua razão de ser na conversa final entre os dois irmãos. O momento mais importante do espetáculo para os 2 atores: Otto Jr. e Eriberto Leão. Como teatro é vivo, diferente a cada dia, há o maior risco dessa curva, dessa transição perder a sua importância definidora. Inclusive, talvez o único defeito do texto (se é que isso é um defeito) é não ter dado um pouco mais de tempo para essa redenção de ambas as partes envolvidas, a fim de que não pareça uma curva esquemática e apressada, até para justificar todo o conflito anterior. Talvez falte mais silêncio nesse momento; a transformação interna depende muito mais de silêncio do que de diálogo.


Somente um ator da categoria de Otto Jr. poderia encarar um personagem que começa no seu volume máximo (o que é acertado), como se mensurasse o sonho da transformação a partir desse universo de rudeza em que vive. A partir disto, o ator vai graduando e deixando à mostra, através de uma interpretação sofisticada e cheia de detalhes, o processo de transformação para sua viagem iniciática, retardada anos a fio e compensada pela audácia embriagadora da aventura (não é gratuito o fato de que, no final do espetáculo, soe a canção de Jorge Drexler, "Al otro lado del rio", ganhadora do Oscar e canção principal da trilha de "Diários de motocicleta").

A MECÂNICA DAS BORBOLETAS
Até 4 de Março
Quarta a Domingo, às 19h
CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil
Rua Primeiro de Março, 66, Centro. Rio de Janeiro-RJ

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...