sábado, 20 de outubro de 2012

A Crônica do Horror

Texto escrito por JOSÉ EDUARDO ZEPKA como “Colunista Convidado” para a coluna EuroCine.
O titular da coluna, D.M. RANGEL, estará de volta em dezembro.

Numa Polônia em reconstrução, Wanda Jakubowska discute os fantasmas que assolaram o país, bem como sua respectiva herança histórica, naquele que foi um dos episódios mais negros da humanidade.

Última Etapa ("Ostatni Etap", Polônia, 1948) é o relato atroz sobre o cotidiano da ala feminina no campo de extermínio de Auschwitz, experiência pela qual a própria diretora passou. Sua estrutura não se prende a um personagem especifico, mas a diversos coletivos interligados (resistência, colaboracionistas e a SS). Logicamente, por um princípio ético, o filme tem núcleo na resistência, mas não esvazia em absoluto o outro lado, embora o estigmatize. Sobressai-se na miscelânea de personagens a: medica soviética Eugenia (ranço de propaganda Stalinista) que personifica a mãe do grupo como consciência maior; e a judia Martha Weiss que abdica de usufruir benesses na condição de tradutora. Ambas se destacam pelo sacrifício em prol da resistência, algo incentivado no período pela configuração política que começava a ganhar corpo na Polônia.


Última Etapa é uma espécie de gênese, junto com "Canções Proibidas" (Zakazane piosenki), do cinema que viria a se desenvolver na Polônia do pós-guerra. Esse focado no “acerto de contas”, filmes que retratam o período da II Guerra e o dirigismo soviético; e nas questões cinematografias modernas influenciadas pelo neorrealismo italiano. O filme partilha inúmeras características com esse último, principalmente por procurar representar a realidade mais próxima de seu âmago, sem haver uso de formalismos maiores ou máscaras desviantes. É o realismo que vai compor a característica-mor imagética do filme, de modo a ser visceral, agregado a riqueza da composição de personagens em situações constrangedoras e contraditórias. Suas filmagens foram realizadas no próprio campo de Auschwitz, aliado a proximidade com os fatos históricos e inúmeros personagens serem não-atores que foram inclusive prisioneiros, o filme ganha um caráter de preciosidade documental.


Uma criança deixa cair seu brinquedo no chão ao sair do trem, em seguida um soldado vem e chafurda-o na lama. Aos recém-nascidos resta o infanticídio. No campo não existe infância, não existe futuro. A maternidade, assim como outras questões – vaidade, educação e fragilidade –, identificadas com o universo feminino, são exploradas com extrema sensibilidade; aí repousa o mérito humano da obra. Jakubowska consegue dar luz a uma abordagem não convencional da guerra pela ótica feminina, oposta diametralmente a masculina, ligada (salvo pré-conceito) à destruição. Não é a toa que a enfermaria do campo seja um ambiente impar na narrativa. Nela as mulheres tem a possibilidade de organizar curas (reconstrução) e nascimentos (criação). No final, cabe às mulheres reerguer o país das ruínas.


Memória; essa é a ideia que vai perpassar literalmente todo filme, desde as cartelas iniciais até o último diálogo. Se viver não é mais uma opção, o sacrifício deve se voltar para salvação simbólica, expressa na memória. Esse “acerto de contas” é a máxima que vai permear o cinema polonês do período até os dias de hoje, muitas vezes a tornar hermética culturalmente certas obras. A motivação da resistência é estabelecer uma comunicação com o estrangeiro para relatar os acontecimentos de Auschwitz e alertar à ajuda internacional (soviética no caso, pois os ingleses nunca chegam). Se o enfrentamento dentro do campo é um “exercício inútil”, a esperança está depositada na ajuda exterior, fazer-se ver aos olhos internacionais e preservar a integridade da história.

NOTA DO AUTOR: Entre os dias 16 e 21 de outubro (2012) ocorre o Festival de Cinema Polonês no CCBB-Rio. A programação contempla os filmes premiados produzidos no país de 2008 até 2011.
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